O Mito e o Texto Sagrado 

O Mito e o Texto Sagrado 

Em um estudo bíblico, certa vez, o pastor explicou a cosmogonia nos dois primeiros capítulos do Gênesis. Em dado momento, ao ser questionado, ele afirmou que a criação poderia ser compreendida como um mito. Percebi, em algumas pessoas, um incômodo com essa afirmação.

Pessoalmente, achei muito ricas as colocações do pastor e trouxeram como pano de fundo, uma discussão importante acerca do lugar do mito na teologia, na exegese bíblica e, por que não, na psicologia. Sim, precisamos entender os mitos ou, pelo menos, o que é mito. 

Na psicologia, a abordagem junguiana é a que mais valoriza, estuda e utiliza os mitos em técnicas e intervenções.  No relato da Dra. Nise da Silveira, pioneira na psicologia analítica no Brasil, uma conversa com C.G. Jung podemos dimensionar a acerca da importância do estudo dos mitos. Ela relatou que

sentada diante do mestre no seu gabinete de trabalho, junto à larga janela com vista sobre o lago, falei-lhe do desejo de aprofundar meu trabalho no hospital psiquiátrico, de minhas dificuldades de autodidata.
Ele me ouvia muito atento. Perguntou-me de repente:
– Você estuda mitologia?
Não, eu não estudava mitologia.
– Pois se você não conhecer mitologia nunca entenderá os delírios de seus doentes, nem penetrará na significação das imagens que eles desenhem ou pintem. Os mitos são manifestações originais da estrutura básica da psique. Por isso seu estudo deveria ser matéria fundamental para a prática psiquiátrica. (Silveira apud MOTTA, 2005, p. 73).

Para entender o preconceito relacionado à noção de mito, é necessário revisitar os fundamentos do pensamento ocidental, enraizados na filosofia grega. Nessa tradição, estabelece-se uma oposição entre mythos e logos, que distingue o discurso tradicional, de caráter simbólico e não verificável, do discurso racional, pautado pela lógica e pela argumentação rigorosa.

Em sua origem, mito (μῦθος, mythos) e logos (λόγος, logos) possuíam o mesmo significado: relato, discurso, narrativa.  Era duas formas similares expressão, Lopes (2015) fez um estudo acerca do uso de mito e logos em autores pré-socráticos como Homero, Hesíodo, Píndaro, Heráclito, Parmênides e Xenófanes e conclui que “a problematização de mythos e logos como duas modalidades narrativas diferentes começa apenas nos Diálogos ” (p.75).

Com Platão, inicia-se a diferenciação entre mito e logos, não como uma ruptura, mas como uma distinção entre polos. Por um lado, na perspectiva do mito, o mundo é percebido pela ótica sagrada, tendo os deuses como fundamentos da realidade, sem os quais nada existiria. A realidade está envolta no mistério da vontade e intervenção divina, de onde tudo emana e para onde tudo se destina. A verdade é uma revelação, cuja validação reside em si mesma.

Platão, por outro lado, empregou o logos para caracterizar o discurso filosófico. Sua ênfase recaía, segundo SCHÜLER (1998), sobre a natureza (physis), configurando um discurso rigoroso (episteme), voltado para o mundo visível e mensurável, à maneira da matemática, portanto, racional. Em Platão, observa-se, ainda, uma profunda relação entre mito e logos. A ruptura ganharia contornos mais nítidos com Aristóteles, a quem se atribui o início do desenvolvimento do método científico.

A distorção do sentido do mito, compreendido como algo falso, fantasioso ou mentiroso, viria da relação conflituosa entre a religião e a ciência. Na Idade Moderna, especialmente com o Iluminismo, firmou-se a crença de que o conhecimento científico seria o único válido e superior, e que deveria dissipar as “trevas” da ignorância, da falsidade e do misticismo religioso. Assim, para uma perspectiva rígida de ciência, o mito foi associado à uma ideia que era uma forma “pré-científica” ou primitiva de explicar o mundo. O que há muito já foi provado que o mito não é uma forma de explicar o mundo, mas uma forma de viver e participar do mundo, a partir de uma compreensão religiosa da realidade.

Joseph Campbell (2002), importante mitólogo estadunidense, afirmava que a mitologia é o nome que damos à religião dos outros, pois é muito difícil compreendermos nossa vivência espiritual como uma mitologia ou mito. Nesse contexto, podemos compreender que o mito é uma narrativa que aproxima o indivíduo religioso do sagrado e, assim, só possui um significado evidente para quem compartilha dessa matriz de fé. Para os demais, são apenas narrativas ou histórias ricas em símbolos e metáforas.

Otto (2007) aponta a importância de entendermos que a religião possui um atributo racional, manifesto por narrativas (mitos), regras, liturgias etc., e um aspecto irracional, impossível de expressar em conceitos, vivido como um sentimento profundo de apreensão, fragilidade e dependência. O mito é um veículo da experiência do sagrado, que nos conduz e nos aproxima do mistério.

Assim, é pouco provável que um cristão se sinta religiosamente inspirado ao ler os Upanishads ou o Alcorão, pois, embora sejam textos sagrados, não fazem parte da narrativa sagrada cristã, ou seja, do mito cristão. Do mesmo modo, para a perspectiva científica o mito é algo estranho, sem sentido, pois estão em modelos ou perspectivas de realidade distintas. (Abordamos esse tema no texto A Experiência Religiosa e a Realidade Psíquica em Jung)

O mito, seja de natureza coletiva ou pessoal, desperta no indivíduo um profundo sentimento de transcendência, integração e pertencimento. Essa vivência simbólica oferece sentido, significado, segurança e esperança à existência. Por isso, Jung recomendou a Nise da Silveira o estudo da mitologia como caminho para compreender a vida e a produção simbólica dos pacientes. Assim, ao acessar as matrizes míticas e simbólicas que os constituem, podemos entender o que realmente é essencial em suas trajetórias.

“Quando utilizamos o mito em seu sentido adequado, livre das distorções de séculos de preconceito científico, podemos compreender o texto bíblico, ou o de qualquer outra tradição religiosa, como um mito. Isso não representa um desrespeito à tradição ou à experiência religiosa que dá sentido à vida e sustenta a fé do indivíduo.”

Referências:

CAMPBELL, J. Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa. São. Paulo: Landy, 2002.

MOTTA, Arnaldo Alves Psicologia Analítica no Brasil; contribuições para a sua história, São Paulo: PUC, Tese de mestrado, 2005

LOPES, Rodolfo. Usos e sentidos de mythos e logos antes de Platão. Prometheus – Journal of Philosophy., [S. l.], v. 8, n. 18, 2015. DOI: 10.52052/issn.2176-5960.pro.v8i18.3840. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/prometeus/article/view/3840 . Acesso em: 15 out. 2025.

OTTO, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção de divino e sua relação com o racional, São Leopoldo:Sinodal/EST; Petropolis: Vozes, 2007.

SCHÜLER, Donaldo. Mythos e logos nos diálogos platônicos. Letras Clássicas, [S. l.], n. 2, p. 317–333, 1998. DOI: 10.11606/issn.2358-3150.v0i2p317-333. Disponível em: https://revistas.usp.br/letrasclassicas/article/view/73742.. Acesso em: 15 out. 2025.

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Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. Coordenador do Blog do Jung no Espirito Santo (www.psicologiaanalitica.com)

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