Indicação de Livro – “A Psique e o Sagrado: O Caminho da Espiritualidade Pessoal”
Atualmente, temos observado dois fenômenos importantes em relação a religiosidade: (1) o retorno de jovens às religiões tradicionais; (2) o aumento de pessoas que vivem a espiritualidade sem uma religião institucional. Esta segunda vivência da espiritualidade é abordada pelo analista junguiano Lionel Corbett, no livro “A psique e o sagrado: espiritualidade para além da religião“, no qual defende a possibilidade de viver uma vida espiritualmente significativa, sem estruturas e dogmas das religiões tradicionais.
Para Corbett, a psicologia profunda, especialmente a junguiana, oferece as ferramentas necessárias para explorar o sagrado e questões existenciais que antes eram de domínio exclusivo da religião.
O cerne da obra reside na ideia de que a verdadeira espiritualidade surge da experiência pessoal do sagrado, ou “numinosum”, como descrito por Rudolf Otto. Assim, essa experiência daria significado às experiências religiosas. Podemos citar algumas importantes abordadas no livro:
– O Encontro com o Sagrado
O ponto de partida da obra: a diferença entre a religião (o sistema social e doutrinário) e a espiritualidade (a experiência direta do sagrado). Nesse aspecto ele ressalta dois pontos fundamentais:
- O Numinosum (A Experiência Direta): Corbett se baseia no conceito de Rudolf Otto para descrever o sagrado como uma força que é simultaneamente tremendum (assustadora e poderosa) e fascinans (cativante e atraente). Esta experiência (o numinosum) é a fonte original de toda a religião, e o livro encoraja a buscá-la diretamente, em vez de através de mediadores religiosos.
- A Espiritualidade Como Fenômeno Psicológico: A psique é vista como o órgão de percepção do sagrado. O sagrado não é algo que acontece fora de nós, mas sim um aspecto do mundo que só pode ser experimentado através do sistema perceptivo da psique.
– O Meio de Experiência do Sagrado
Corbett aprofunda conceitos da psicologia junguiana para explicar como a psique está estruturada para a espiritualidade.
- A Realidade da Psique: O autor insiste que a psique é tão real quanto a matéria e possui suas próprias leis. Ela é concebida em camadas: o inconsciente pessoal (experiências históricas, pessoais) e a psique objetiva ou inconsciente coletivo.
- O Arquétipo como Espírito: No cerne da psique objetiva estão os arquétipos: padrões basais, isto é, universais organização psíquica que estruturam a psique pessoal e coletiva, sendo percebidos nos mitos e narrativas religiosas. Corbett os descreve não apenas como princípios psicológicos, mas como a manifestação do espiritual na forma psíquica. O arquétipo do Si-mesmo, ou do Self, como arquétipo de Deus (imago dei) é a totalidade psíquica, o centro regulador da personalidade, que transcende o ego.
- Deus na Psique: A imagem que temos de Deus é arquetípica, mas é profundamente colorida por nossas experiências pessoais. A identificação da imagem de Deus com os complexos (padrões organizadores de nossa experiência pessoal) é uma ideia central, mostrando como a relação com os pais influencia nossa teologia.
- Ritual e Transformação: Os rituais de passagem (nascimento, casamento, morte) são arquetípicos e universais. Eles estruturam o encontro com o numinosum em momentos de transição, ajudando a integrar grandes mudanças psíquicas de forma segura e significativa.
-As Manifestações do Sagrado
Corbett elenca algumas manifestações cotidianas do sagrado que, podem ser vividas sem a mediação institucional, são exemplos.
- O Numinosum nos Sonhos: Os sonhos são vistos como um portal privilegiado. Sonhos “numinosos” trazem sua própria autoridade e muitas vezes revelam símbolos do sagrado que são pessoais ao indivíduo, não se alinhando necessariamente com as imagens religiosas de sua cultura.
- A Natureza como Numinosum: A experiência de vastidão e Presença na natureza é vista como um encontro autêntico com o sagrado, um retorno ao panteísmo. Corbett argumenta que o mundo natural está impregnado de espiritualidade, oferecendo um senso de pertencimento cósmico.
- O Corpo, Emoções e Sofrimento: As emoções intensas (como o assombro) são manifestações corporais do numinosum. Além disso, o sofrimento e a doença são apresentados como crises existenciais que, quando enfrentadas, podem levar à transformação da imagem de Deus, impulsionando a maturidade espiritual para além de uma teologia, muitas vezes, infantil.
– O Caminho da Espiritualidade Pessoal
A parte final descreve a prática de uma espiritualidade que nasce da psique e se sustenta no dia a dia.
- Consciência Plena e Aceitação: Corbett destaca a Atenção como o estado de consciência fundamentalmente espiritual, que nos conecta com o “Espaço” silencioso onde reside a Consciência do Si-mesmo. Isso leva à Aceitação radical de “Aquilo-Que-É”, o pré-requisito para o amor maduro.
- O Confronto com a Sombra: Não há caminho espiritual sem a integração da sombra (os aspectos que o ego renega). O trabalho espiritual exige confrontar e assimilar o lado sombrio de nós mesmos, resistindo à tentação de projetar o mal no outro.
- O Futuro da Psicologia e da Religião: O autor conclui que, no futuro, a psicologia profunda se tornará cada vez mais central na experiência humana, pois oferece as ferramentas para mediar o encontro entre a psique e o sagrado, fazendo com que a busca espiritual se torne inseparável do autoconhecimento.
Dessa forma, “A psique e o sagrado” é um livro que apresenta uma via para quem quer compreender a espiritualidade sem instituições religiosas, assim como oferece uma orientação para aqueles que buscam uma vida espiritual robusta e pessoal, enraizada na experiência psicológica além das fronteiras estabelecidas pela religião tradicional. Em todo caso, é uma obra muito rica que oferece recursos para compreender a espiritualidade em suas diversas manifestações.
Sumário
Sumário
Agradecimentos
Prefácio
Introdução
Parte I
Encontrando o mistério Desenvolver uma espiritualidade pessoal
O numinosum Experiência direta do sagrado
Introdução: O que é experiência sagrada?
O numinosum nos sonhos
O efeito curativo do numinosum
O numinosum experimentado na natureza
O numinosum no corpo
O numinosum nas relações
Experiências de unidade
O numinosum e a criatividade
Receptividade ao numinoso
O numinoso disfarçado
Algumas diferenças entre abordagens tradicionais e experienciais do sagrado
O problema de compreender a experiência numinosa
Armadilhas da abordagem experiencial
A realidade da psique O arquétipo como um princípio espiritual
A realidade da psique
Os componentes da psique
Os arquétipos
Os arquétipos como princípios espirituais
O arquétipo em sua manifestação cultural
Masculinidade e feminilidade arquetípicas
O processo ritual e o arquétipo da iniciação
Ritos de passagem
Ritual e psicoterapia
Iniciação espontânea na adolescência
É Deus sinônimo de psique? A “nova dispensação”
Personalidade, psicopatologia e espiritualidade pessoal
Introdução
Arquétipos e complexos
Complexos em nossas relações
Os complexos e nossa imagem preferida de Deus
Arquétipos, complexos e nossa vida espiritual
Espiritualidade e personalidade em São Francisco de Assis e São Paulo50
Doutrina e complexo – Uma rigorosa conexão
Imagens oníricas, padrões arquetípicos e mitologia
Diferentes temperamentos, diferentes espiritualidades
Sobre saúde espiritual e transtorno espiritual
Parte II
Pela lente da psique Uma abordagem de questões espirituais a
partir da psicologia profunda
Uma visão de algumas ideias religiosas a partir da psicologia
profunda
Introdução
A salvação como uma necessidade psicológica
A necessidade psicológica de redenção
Espírito e alma no pensamento religioso tradicional
O espírito como arquétipo
A alma no pensamento tradicional e na psicologia profunda
Uma psicologia profunda do mal
Introdução
Conhecemos a natureza essencial do bem e do mal?
A abordagem do mal de acordo com o monoteísmo ocidental
Teodiceia: a justificação de Deus
A abordagem de textos sagrados
Abordagens psicológicas do mal
O problema da projeção
Os alicerces inconscientes do mau comportamento
Compreensão empática do mau comportamento
As origens desenvolvimentais do mau comportamento
Moralidade e consciência
A questão da responsabilidade
A sombra
O lado sombrio do Si-mesmo
O lado sombrio do si-mesmo e as provações de Jó
Transformação da imagem de Deus
Introdução
O Livro de Jó
Reação de Jó às suas perdas
O diálogo de Jó com seus amigos
A resposta de Deus do meio do turbilhão
A projeção de Jó em sua imagem de Deus
Satanás como um setor da personalidade de Jó: Complexo paterno de Jó
Abordagens tradicionais e psicológicas comparadas
Uma réplica à Resposta a Jó de Jung
Jó como um modelo dos efeitos transformadores do sofrimento
Um sentido do sagrado Espiritualidade para além da religião
Espiritualidade e instituições religiosas
O que dizer dos textos sagrados?
As práticas tradicionais são necessárias?
Sobre os mestres espirituais
O que é espiritualidade autêntica?
Dualismo e monismo: duas abordagens da espiritualidade
Ser espiritual sem qualquer religião
Sobre a psicologia de algumas virtudes espirituais tradicionais
Uma nota de advertência acerca da jornada espiritual
A questão dos estágios
Exercícios de discernimento
Como será o futuro?
Referências
Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. Coordenador do Blog do Jung no Espirito Santo (www.psicologiaanalitica.com)



Publicar comentário