Fé, Apego e Psicoterapia

Fé, Apego e Psicoterapia

Uma breve vinheta clínica

Há muitos anos eu atendi uma senhora evangélica, com pouco mais de 60 anos, que atravessava problemas com a saúde do filho e do marido. Era uma mulher que viveu sempre de acordo com a doutrina de sua denominação. Até que um dia, ao final da sessão, eu abri a porta, mas antes de sair, ela me olhou e com um tom grave ela me perguntou

– Sabe, às vezes me sinto tão fraca, tão ridícula que tenho vergonha até de orar. Devo orar?

Com a porta já aberta, sem tempo para pensar, apenas respondi:

– Sim, ore. Deus não falou para Paulo que “o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza”?

Aquela senhora, apenas concordou com a cabeça, deu um passo em direção à porta e, sem eu esperar rapidamente virou-se para mim, me deu um abraço e saiu rapidamente.

A fé daquela paciente era genuína, mas diante de tanto sofrimento, ela foi aos poucos se esvaindo, aproximando-a da desesperança. Minha resposta, embora intuitiva e pouco refletida, trouxe à paciente um novo alento, especialmente considerando as dificuldades que estavam por vir.

Com frequência falamos sobre experiência religiosa e espiritualidade, mas pouco sobre fé. O analista junguiano Lionel Corbett (2024) comentou que a fé é geralmente relacionada à teologia, mas não podemos ignorar sua importância psicológica, pois para muitas pessoas ela é fundamental para evitar o colapso emocional. Apesar disso, a fé é mais considerada pelos psicólogos que atuam com cuidados paliativos, como estratégia de enfrentamento religioso-espiritual da doença.

A fé é uma experiência fundamental baseada na confiança, segurança e vínculo, sustentando crenças pessoais e coletivas — seja em vivências religiosas e espirituais ou em convicções não religiosas, de ordem ideológica ou filosófica.

No geral, observa-se que os estudos sobre o desenvolvimento e a aquisição da fé na infância não costumam receber grande destaque, predominando uma abordagem centrada nas influências socioculturais — ou seja, nos fatores culturais, familiares e sociais que moldam as crenças e comportamentos das crianças.

Uma perspectiva útil para pensar sobre o desenvolvimento da fé é a Teoria do Apego de Bowlby, que explica como as relações afetivas estabelecidas na infância impactam a forma de ser e de enxergar o mundo. Segundo essa teoria, crianças que desenvolvem vínculos seguros com seus cuidadores tendem a confiar mais no ambiente ao seu redor, o que pode facilitar o surgimento de experiências de fé ou espiritualidade. Assim, a qualidade desses vínculos afetivos pode servir como base para a construção de crenças, sentimentos de proteção e senso de pertencimento, elementos fundamentais para o desenvolvimento da fé. Podemos pensar a relação do apego e fé:

Apegou seguro: Pessoas com uma vivência de apego seguro tendem a desenvolver confiança, autonomia, segurança e flexibilidade na relação com os outros. Por exemplo, alguém com apego seguro costuma buscar apoio em amigos ou familiares durante momentos difíceis, sentindo-se à vontade para compartilhar suas angústias. Da mesma forma, uma pessoa com fé segura pode encontrar conforto em práticas espirituais ou na oração, recorrendo ao sagrado com naturalidade nos momentos de adversidade. Assim como o apego seguro promove relações interpessoais saudáveis, a fé segura favorece uma relação positiva com o sagrado, ambas contribuindo para o bem-estar emocional. Em relação à fé, uma fé segura possibilita compreender que a relação com o sagrado é de acessibilidade, amor e confiança. Dessa forma, a fé fortalece a segurança interna e traz conforto diante das adversidades.

Apego inseguro ou ansioso: pessoas com vivência de apego inseguro, ou seja, pessoas que vivenciaram um cuidado inconstante— em que o cuidador ora se mostra disponível e atento, ora distante e imprevisível emocionalmente — desenvolvendo necessidade contínua de validação, preocupação ou ansiedade em relação ao julgamento dos outros e medo constante de rejeição. Uma “Fé insegura” pode ser marcada pela rigidez, medo de pecar e, assim, se rejeitada por Deus, buscando uma excessiva validação religiosa, muitas vezes caracterizando um fanatismo religioso.

Apego evitativo: pessoas com apego evitativo tendem a suprimir suas necessidades emocionais, apresentam-se como autossuficientes e evitam intimidade. Para esses indivíduos, a fé é percebida principalmente como uma ideia, sendo vivenciada de forma racional e com certo distanciamento emocional. A fé evitativa não tem no sagrado uma vivência de confiança e segurança. Por exemplo, pessoas com fé evitativa podem participar de rituais religiosos sem envolvimento emocional profundo, priorizando o entendimento intelectual sobre experiências de conexão espiritual.

Apego desorganizado: Pessoas com apego desorganizado vivenciaram situações traumáticas, nas quais os cuidadores eram tanto referência de segurança quanto ameaça e perigo. Assim, essas pessoas desenvolvem relacionamentos marcados por um desejo intenso de proximidade, mas também por uma tendência imprevisível de evitar o contato, resultando em comportamentos contraditórios. Elas costumam apresentar grande labilidade emocional e dificuldade para regular as próprias emoções. A “fé desorganizada” a uma vivência conflituosa, em que Deus ou o divino é percebido simultaneamente como figura de amor e de terror, despertando sentimentos mistos de devoção, raiva e medo, que frequentemente reeditam vivências traumáticas anteriores.

Podemos compreender a relação da fé e da teoria do apego por duas vias: A primeira via diz respeito às pessoas com uma história de fé segura e saudável que, diante das dificuldades da vida e do sofrimento psíquico que as levam à psicoterapia, podem vivenciar uma crise de fé. Como ilustrado pelo caso da paciente mencionado no início do texto, as mudanças emocionais e os desafios enfrentados podem abalar fé.

A segunda via se refere aos pacientes cuja fé ocupa um lugar importante em sua vida, mas que apresentam características de apego ansiedade, comportamentos de evitação ou padrões emocionais desorganizados. A partir dessa percepção, podemos nos voltar para a experiência de vida do paciente, pois a psicoterapia, o autoconhecimento e o amadurecimento podem trazer benefícios tanto para sua vida secular quanto para sua vivência de fé.

A fé em crise assemelha-se a uma vela tremulando em meio à escuridão: delicada, mas capaz de iluminar e aquecer o ambiente ao seu redor… Por isso, é fundamental estarmos atentos para preservá-la, pois, muitas vezes, ela representa a única referência de sentido para o paciente. Independentemente de qual seja o objeto da fé do paciente, é importante compreender como essa fé influencia sua vida.

Referências

Corbett, Lionel, O Caldeirão Sagrado, Petrópolis> Vozes, 2024.

Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. Coordenador do Blog do Jung no Espirito Santo (www.psicologiaanalitica.com)

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