Religião, Espiritualidade, Ética e Psicoterapia: uma reflexão junguiana

Religião, Espiritualidade, Ética e Psicoterapia: uma reflexão junguiana

Este texto foi publicado orginalmente no Blog Jung no Espírito Santo e foi revisto em 28/09/2025

A experiência religiosa é um aspecto fundamental de nossa vida social e pessoal. A partir dela nos orientamos pela crença, descrença ou indiferença, dando contornos e modelando a forma como estabelecemos nossas relações interpressoais, a escolha dos grupos que participamos, a forma como nos compreendemos como indivíduos e nossa função social. Esses modelos podem vir de uma perspectiva moral, doutrinária oriunda da tradição e da instituição religiosa ou numa perspectiva ética, onde a partir da experiência pessoal com o sagrado, da reflexão e relações o indivíduo faz suas escolhas.

Apesar da grande importância na vida das pessoas, muitos profissionais e abordagens dentro da psicologia tendem a ver a religiosidade das pessoas com excessiva reserva. Por vezes, estudantes de psicologia já me questionaram sobre eu falar abertamente a relação entre religião/ religiosidade/espiritualidade e psicologia, pois na faculdade o “professor falou que não podia falar de religião com o paciente” ou que “falar de religião no consultório é anti-ético”.

De fato, essas falas se devem a uma interpretação rígida do artigo 2, alinea b do Código de Ética do Profissional da Psicologia e de uma visão equivocada, ou mesmo o desconhecimento acerca do fenômeno religioso. Vejamos o que diz o:

Art. 2. Ao psicólogo é vedado

b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;

O artigo 2 alinea b do código de ética não é “contrario à religião” como alguns fazem parecer. Este é um artigo que, basicamente, conversa com o artigo 5º da Constituição Federal, que versa em defesa da liberdade de opinião, crenças, orientação sexual, individualidade e autodeterminação do cidadão. Assim, o código de ética resguarda a liberdade do paciente, compreendendo que o mesmo, ao buscar a psicoterapia, pode estar numa situação de vulnarabilidade, cabendo ao profissional respeitá-lo e não se aproveitar da relação terapêutica para qualquer tipo de proselitismo.

Deste modo, o código de ética indica que o profissional precisa compreender e respeitar as crenças do paciente, sem induzir ou impor as próprias crenças pessoais ao processo terapêutico do paciente. Ressaltando que a indução à crença ou descrença é igualmente condenado pelo código de ética.

A respeito da relação entre Psicologia e Religião, o Conselho Federal de Psicologia, em 2013, produziu um documento chamado “Posicionamento do Sistema Conselhos de Psicologia Para a questão da Psicologia, Religião e Espíritualidade”. Nele, temos considerações importantes que dizem:

VII . Mas pautar-se na obrigatória laicidade não implica negar uma interface que pode ser estabelecida pela psicologia e a religião, e pela psicologia e a espiritualidade.
VIII. A religião é um dos elementos mais complexos e irredutíveis da tessitura das culturas. Aborda a relação das pessoas com aspectos transcendentais da existência. Seus fundamentos e práticas orientam de forma significativa as ações humanas. Pessoas e instituições que orientam seu fazer social tendo por referência a religião o fazem, a partir de um pressuposto que reflete suas crenças e, portanto, sua religiosidade.
XI. A busca do fundamento sagrado da vida, daquilo que confere sentido à existência é, entretanto, de ordem espiritual. Desta forma, compreende-se que as religiões se encontram na espiritualidade.
Todavia, a buscado sentido último da existência, não se reduz à religião.
(…)
XI. Reconhecemos a importância da religião, da religiosidade e da espiritualidade na constituição de subjetividades, particularmente num país com as especificidades do Brasil. Neste sentido compreendemos que tanto a religião quanto a psicologia transitam num campo comum, qual seja, o da produção de subjetividades, entendendo ser fundamental o estabelecimento de um diálogo entre esses conhecimentos. Este fator requer da Psicologia toda cautela para que seus conhecimentos, fundamentados na laicidade da ciência, não se confundam com os conhecimentos dogmáticos da religião. Reconhecemos, também, que toda religião tem uma dimensão psicológica e que, apesar da Psicologia poder ter uma dimensão espiritual, ela não tem uma dimensão religiosa, o que nos remete ànecessidade deaprofundarmos o debate da interface da Psicologia com a espiritualidade e os saberes tradicionais e populares, além de buscarmos compreender como a religião se utiliza da psicologia.
(…)
XIV. Todavia, somos terminantemente contrários a qualquer tentativa fundamentalista de imposição de dogma religioso, seja ele qual for, sobre o Estado, a Ciência e a profissão e, a qualquer forma de conhecimento que procure naturalizar a desigualdade social, a pobreza ou o cerceamento dos direitos constitucionais. Por isso, não pouparemos esforços para garantir o estado de direito e as instituições democráticas, compreendendo ser essa a condição sine qua non para a manutenção e o desenvolvimento da saúde psicossocial da população brasileira, base para um processo saudável de subjetivação. (Conselho Federal de Psicologia, 2013)

Nessa mesma direção, visando a proteção da liberdade e dignidade individual, o Conselho Federal de Psicologia emitiu a Resolução 07/2023, que estabelece os limites acerca da laicidade da psicologia e do exercicio profissional, a fim de garantir a integridade e dignidade de toda pessoa. Ao estabelecer esses limites, não há uma negação da religião, religiosidade ou espiritualidade, mas uma delimitação que possibilita o diálogo, sem que ocorra uma mistura das práticas psicológicas e das concepções religiosas.

Desta forma, devemos compreender e estudar o fenômeno religioso de tal forma que valorizemos a experiência religiosa dos atendidos. Segudo Ávila,

“o termo ‘experiência religiosa’ para designar a experiência imediata e intuitiva de algo ou de alguém que me transcende, que pode ser uma experiência meramente pontual ou uma vivência de fundo, que aparece de forma mais ou menos estável ao longo da vida do indivíduo. Essa vivência íntima e pessoal pode cristalizar-se numa vivência religiosa plena ou não. Pode estruturar-se racionalmente, gerando uma determinada cosmovisão, um corpo de crenças estável, ou deixar-se influenciar, de forma sincrética , pelas distintas ofertas fornecidas pelo ambiente e pela cultura (AVILA, 2007, p.98).

A vivência religiosa que pode ser funcional e organizadora, promovendo saúde; ou disfuncional, causando adoecimento. Para distinguí-las, é necessário compreender o ponto de vista do paciente, suas experiências e os fundamentos que constituem as crenças religiosas e seu modo ser e ver o mundo.

A dificuldade da compreensão da dimensão religiosa trazida pelo paciente, e consequentemente do trabalho ético, se dá pelo desconhecimento dos processos simbólicos saudáveis e transformadores que podem estar associados às narrativas religiosas; desconhecimento da história, da doutrina e dos valores de cada religião ou da denominação religiosa; desconhecimento acerca fenômenos presentes na religiões como glossolalia (falar em linguas), êxtase, transe, visões e alterações na percepção/sensação como fenômenos que fazem parte do processo religioso e que não devem ser equiparados a fenômenos psicopatológicos.

A pouca ou nenhuma atenção dada pelas faculdades de psicologia aos processos estudados pela psicologia da religião, área que não é delimitada no Brasil, favorece não só o preconceito, mas erros na conduta por profissionais que desconhecem formas de abordar a experiência religiosa dos pacientes – misturando a própria experiência religiosa com a experiência do paciente.

Religiosidade e Espiritualidade na Clínica

Como devemos compreender a forma como a religiosidade e espiritualidade entra na clínica? Essa questão é fundamental, assim, devemos entender que essa vivência religiosa varia para cada pessoa, gerando diferentes atitudes. O profissional deveria estar atento às atitudes dos indivíduos frente à religiosidade e à espiritualidade, que poderiam ser descritas como:

1 – Pessoas religiosas cuja vivência religiosa é tão significante quanto determinante no seu modo de ser. Assim, sua devoção está sempre presente no discurso, no modo como fala, no modo como se comporta e ouve. Com essas pessoas a atenção aos processos religiosos é importante para que se sintam ouvidas e compreendidas em sua fé.

2 – Pessoas religiosas cuja vivência é significante, porém não determinante em sua vida, sendo flexível e aberta a novas possibilidades independente de sua religiosidade. São pessoas que, apesar de sua vivência religiosa e espiritual serem importantes, estas não serão abordadas na psicoterapia.

3 – Pessoas afastadas de sua matriz religiosa ou em crise de fé, cuja significância e determinação da experiência religiosa é incerta, podendo ser mais ou menos flexíveis a novas possibilidades. Este é terreno pantanoso onde devemos ir com cautela, pois é comum que diante de de novas perspectivas diante da vida, podem reagir com medo, culpa e se fecharem, levando levando um retorno defensivo a sua matriz religiosa, por isso, devemos considerar cuidadosamente esses relatos afastamentos e crises de fé.

4 – As pessoas que se afirmam a-religiosas ou ateístas nesse caso, no máximo verificaríamos a história religiosa familiar de sua origem religiosa. O campo religioso não é abordado nesse contexto.

Levando em consideração esses fatores, podemos pensar a religiosidade e espiritualidade em, pelo menos, três situações: anamnese, linguagem e encaminhamentos/parcerias.

Anamnese: É muito importante verificar se o paciente pratica ou tem alguma referência de religiosidade e espiritualidade no momento: como é envolvimento pessoal (compreendendo suas crenças) e social (atribuições, cargos, frequência de atividades) e para se ter uma dimensão de como se deve ser dada atenção a esse aspecto da vida do paciente, assim como, qual era a referência religiosa de sua familia durante sua infância. Compreender a origem religiosa do sistema familiar pode nos dar uma perspectiva do desenvolvimento da culpabilidade, preconceitos, temores, fantasias – isso é importante para perceber aspectos históricos associados aos complexos de pacientes não-religosos, quanto verificar (posteriormente) se há conexão com os valores e crenças que o paciente professa no presente, e se há signficância ser abordada no tratamento.

Na area médica, tem crescido o uso de instrumentos designados como “anamnese espirtitual” que são questionários que permintem compreender a crença, a relevância para o indivíduo e como ele compreende o papel da religiosidade e espiritualdiade no processo enfrentamento da doença.

Linguagem: Quando verificamos que a religião é um tema significante e recorrente na terapia do paciente, podemos ajustar nossa linguagem tanto de modo a não agredir o paciente, como também, utilizar metáforas/alegorias e figuras de linguagem pertinentes aos símbolos que fazem parte do universo do paciente.

Isso significa ler, conviver e aprender com pessoas das diferentes religiões que estão em nosso dia a dia. É importante ter noção de narrativa bíblica (nem me refiro a teologia, digo do texto), para atender um evangélico ou católico, do mesmo modo que, ao atender um candomblecista, é importante conhecer um pouco das caracteristicas dos orixás, preceitos e obrigações; sobre as entidades da umbanda para compreender sua importância para o umbandista.

Encaminhamentos: Em algumas situações é importante conhecer líderes religiosos que possam auxiliar a pessoa do paciente em suas questões de fé, que não cabem ao psicólogo. Assim, caso o paciente não se sinta confortável com seu própria lider religioso, podemos indicar ou encaminhar o paciente para um lider, de acordo com a matriz religiosa do paciente.

Ter contatos com líderes religiosos como padres, pastores(as), reverendos(as), pais/mães de santo ajudam a ter encaminhamentos que podem auxiliar o paciente em suas questões propriamente religiosas. Ajudam a pensar em referência religiosas que auxiliem, caso um paciente precise, dentro de sua própria concepção e matriz religiosa. É importante conhecer lideres que possam compreender o trabalho do psicólogo e trabalhar em parceria, mas reconheço que, infelizmente não são muitos que conseguem ter essa visão. Compreendendo a saúde em seu aspecto amplo como busca de bem estar fisico, mental, social e espiritual, devereríamos compreender que bons líderes religiosos poderiam ser parceiros – assim como fazemos com outros profissionais da saúde.

A Religião e Espiritualidade na Psicologia Analítica

Jung sempre foi enfático ao afirmar que não defendia uma ou outra confissão religiosa, mas compreendia a religiosidade e espiritualdiade como atitudes do individuo frente ao mistério. O psicólogo não precisa defender ou validar um ponto de vista religioso ou sobrenatural, para reconhecer seu valor psíquico para o individuo. Jung dizia

Minha atitude é, portanto, positiva com relação a todas as religiões. No seu conteúdo doutrinário reconheço aquelas imagens que encontrei nos sonhos e fantasias de meus pacientes. Em sua moral vejo as mesmas ou semelhantes tentativas que fazem meus pacientes, por intuição ou inspiração próprias, para encontrar o caminho certo de lidar com as forças psíquicas. O sagrado comércio, os rituais, as iniciações e a ascese são de grande interesse para mim como técnicas alternativas e formais de testemunhar o caminho certo (JUNG, 1989, p. 326).

Fica evidente que Jung reconhecia na religiosidade e espiritualdiade possibilidades que favorecem o desenvolvimento psiquico que foram se constituindo ao longo da história humana. Com isso, devemos perceber que a vivência religiosa pode oferecer rotinas estrututadas (rituais pessoais saudáveis), construção de uma visão de mundo pessoal (mitologia/simbolismo pessoal), consciência ampliada e autopercepção (práticas meditativas e contemplativas), dentre outras formas que possibilitam a elaboração de processos psíquicos internos e externos.

Nessa perspectiva, Jung considerava as religiões e a psicoterapia como pares no processo de cura ou elaboração do sofrimento da alma humana. Isso é muito caro à psicologa analítica pois integra a psicoterapia ao universo simbólico do paciente. Isso não é uma questão do profissional ter ou não religião, mas de entender a história, as práticas e as doutrinas religiosas – como dito acima, isso vem com estudo, experiência e disponibilidade para compreender a multiplicidade vivências religiosas. E ter clareza que a clínica não tem a ver com a “nossa” experiência pessoal, mas sempre com a experiência do paciente.

Começamos citando o Código de Ética da Psicologia, contudo, gostaria de concluir com uma citação muito importante de Jung que tantos anos antes, repercutia a mesma preocupação expressa veio a ser expressa no artigo 20 aliena b do Código Ética. Ele diz:

(…) o psicoterapeuta está obrigado a um autoconhecimento e a uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia. O médico deve conhecer sua equação pessoal para não violentar seu paciente” (Jung, 2000, p.154).

Violentamos nosso paciente quando impomos nossas crenças, muitas vezes, também o violentamos quando, mesmo por desconhecimento, negamos/rejeitamos suas crenças como parte essencial de sua vida e que podem contribuir para sua saúde. Compreender e respeitar é um princípio fundamental para o exercício profissional – incluindo o lidar com as crenças religiosas dos pacientes.

Referência Bilbiográficas

ÁVILA, Antonio, Para conhecer a Psicologia da Religião, Edições Loyola: São Paulo,SP, 2007.

Conselho Federal de Psicologia – CFP. POSICIONAMENTO DO SISTEMA CONSELHOS DE PSICOLOGIA PARA A QUESTÃO DA PSICOLOGIA, RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE. Disponível em https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2014/06/Texto-aprovado-na-APAF-maio-de-2013-Posicionamento-do-Sistema-Conselhos-de-Psicologia-para-a-questão-da-Psicologia-Religião-e-Espiritualidade-8-2.pdf

JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989.

JUNG,C.G. Civilização em Transição , Petrópolis,: Vozes 2000

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Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. Coordenador do Blog do Jung no Espirito Santo (www.psicologiaanalitica.com)

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