A Epidemia da Solidão e a Religião

A Epidemia da Solidão e a Religião

Vivemos uma crescente epidemia de pessoas solitárias. Segundo o relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 2025, intitulado “Da Solidão à Conexão Social”, a solidão e o isolamento social representam um grave risco à saúde, configurando uma epidemia silenciosa que atinge o mundo todo.

A solidão é um estado subjetivo e negativo que produz sofrimento psíquico, resultante da diferença entre o nível de conexão social desejado e o nível real; é o sentimento de estar desconectado afetivamente e sem relações de intimidade. Por outro lado, o isolamento social é um estado objetivo que se refere à ausência ou à escassez de interações, papéis ou relacionamentos sociais na vida de um indivíduo. Nesse texto, não vamos nos referir à solitude, que seria a “solidão positiva”, associada ao amadurecimento, capacidade de introspecção e contemplação – que poderemos abordar em outro texto.

Em todo caso, a solidão e o isolamento social são considerados fatores de risco para muitas doenças físicas — como cardiovasculares, diabetes tipo 2 e doenças inflamatórias — além de diminuir a resistência imunológica. No campo do adoecimento psicológico, estão associados à ansiedade e depressão, aumentando o risco de ideação suicida e autolesão. Na terceira idade, elevam o risco de declínio cognitivo, demência e Alzheimer. Isso se soma ao fato de a solidão ser um fator de risco para hábitos comportamentais nocivos (ou prejudiciais), como tabagismo, abuso de álcool e outras substâncias, e dieta inadequada. Além disso, afeta negativamente o sono e contribui para a baixa adesão aos tratamentos.

Assim, a solidão e o isolamento social são consideradas questões de saúde pública pela OMS. São muitos os fatores de risco para o desenvolvimento da solidão e isolamento social que incluem:

  • Saúde Mental: Condições como depressão e ansiedade são fortemente associadas ao aumento da solidão e do isolamento.
  • Saúde Física Crônica: A presença de doenças crônicas e a piora da função física (incluindo declínio cognitivo e comprometimento nas atividades diárias) limitam as capacidades e oportunidades de interação social.
  • Características de Personalidade: Traços como o neuroticismo (tendência a experimentar emoções negativas), introversão acentuada e baixa autoestima aumentam o risco de solidão.
  • Status Socioeconômico: Vulnerabilidade social, desemprego e baixa escolaridade limitam o acesso a recursos e a participação em atividades sociais, podendo impactar negativamente a conexão social.
  • Relações Conjugais: Não ter um parceiro íntimo ou ser solteiro é um dos fatores de risco importante.
  • Moradia: Viver sozinho é um forte indicador de risco de isolamento social.
  • Qualidade da Rede Social: Baixo suporte social percebido (emocional, prático, etc.) e a baixa qualidade dos relacionamentos são riscos significativos para a solidão.
  • Experiências na Infância: Relações parentais complicadas ou hostis e a ocorrência de experiências adversas na infância (como trauma e negligência) predispõem à desconexão mais tarde na vida.
  • Conflitos Sociais: Ser vítima de bullying ou experiências de violência
  • Infraestrutura e Acesso:
    • Ambiente Construído: A falta de acesso a transportes públicos e a baixa disponibilidade de espaços públicos (como parques e serviços) dificultam as interações.
    • Qualidade do Bairro: Baixa satisfação com o bairro, falta de segurança e condições de moradia inadequadas.
  • Estrutura Macroeconômica: A desigualdade de renda em nível nacional e o enfraquecimento dos sistemas de bem-estar social podem aumentar a solidão.
  • Tecnologia Digital: O uso excessivo ou o uso da tecnologia como substituto para a interação presencial (em vez de um complemento) representa um risco emergente, com preocupações específicas sobre o impacto na saúde mental de jovens.
  • Fatores Históricos e Estruturais (de Longo Prazo): Tendências como a urbanização rápida, a secularização (declínio da participação religiosa) e estigmas sociais, como racismo, machismo e lgbtfobia.

É importante ressaltar que esses são fatores de risco, não determinantes. A solidão é um processo complexo e multidimensional. Destacamos três tipos: emocional, social e existencial.

No campo emocional, a solidão se refere à ausência de uma relação afetiva e íntima. Muitas pessoas passam por processos de desconexão afetiva no casamento e sofrem de solidão conjugal; em grupos, pode haver a “solidão na multidão”.

No aspecto social, refere-se à ausência de suporte ou rede de apoio satisfatória e ampla, à falta de conexão com grupos, assim como à insatisfação com a qualidade dos relacionamentos.

A solidão existencial decorre da sensação de falta de propósito e sentido de vida. Frequentemente, está associada a reflexões sobre a finitude e a mortalidade, manifestando-se como alheamento, sensação de vazio e profundos questionamentos sobre a própria existência.

Solidão, Isolamento e a Religião

A religião, compreendida como uma instituição e comunidade de fé, pode ser um fator protetivo contra a solidão e o isolamento social. Ela oferece a possibilidade de integração social, rede de apoio, auxílio emocional e espiritual. Dessa forma, contribui com o propósito e sentido de vida, aumentando a capacidade de fazer um enfrentamento positivo das adversidades, além de estimular comportamentos saudáveis.

Apesar disso, temos observado na prática clínica que muitos pacientes religiosos sofrem com a solidão e o isolamento social dentro das igrejas, e alguns se afastaram justamente por não se sentirem integrados ou pertencentes. Vale ressaltar que são pacientes que não apresentam uma crise de fé, mas sim um sentimento de desconexão e de não pertencimento.

Do mesmo modo, a solidão afeta líderes religiosos que vivem sob pressão, cobranças e pouco suporte, o que se reflete na quantidade de líderes e pastores com depressão e, em casos extremos, que cometem suicídio.

Solidão e Sofrimento

A solidão não é uma escolha, mas o resultado de processos relacionais que produziram feridas psíquicas que resultaram nessa resposta de retraimento e desconfiança nas pessoas e instituições (e em si mesmo). Por isso, muitos sofrem por não conseguirem se relacionar e manter os relacionamentos.

Assim, a solidão e o isolamento social podem ser interpretados como um processo defensivo para lidar com o sofrimento. Este, por sua vez, pode estar relacionado, por um lado, a experiências passadas dolorosas, associadas a sentimentos de frustração, decepção e humilhação. Por outro lado, pode estar ligado à dificuldade de adaptação a situações novas, em decorrência da escassez de recursos de relacionamento interpessoal. Ambas as situações — tanto as passadas quanto as que exigem adaptação — geram sentimentos de insegurança, ansiedade e baixa autoestima, afetando a capacidade de aceitação e integração.

Por isso, a participação em um grupo não garante a superação da solidão e, em algumas situações, estar num grupo (como participar de uma igreja, por exemplo) pode mascarar e, a longo prazo, agravar o sentimento de solidão. Da mesma forma, discursos que afirmam que a solidão é falta de fé, oração ou de Deus se tornam cruéis com essas pessoas, pois as culpabilizam e intensificam seu sofrimento.

Para muitas pessoas, a psicoterapia é fundamental para compreender as bases do sofrimento que geram a solidão, assim como para trabalhar habilidades ou estratégias para lidar com as dificuldades de relacionamento interpessoal, permitindo que se integrem e se sintam pertencentes a grupos.

Finalizando

A solidão é uma questão de saúde pública; nesse contexto, a religião e as comunidades religiosas podem ser tanto um fator protetivo quanto de risco para quem sofre de solidão e isolamento social.

Num país religioso como o Brasil, com pluralidade de denominações religiosas, a religião se torna tanto um caminho espiritual quanto social, tendendo, por natureza, a oferecer afinidade e acolhimento aos fiéis e àqueles que a procuram. Contudo, a religião pode ser um fator de risco quando o sentimento de solidão é julgado como algo puramente espiritual, culpabilizando essas pessoas. Além disso, as megaigrejas podem ser desafiadoras para aqueles com dificuldades em estabelecer vínculos. 

Considerando que a solidão e o isolamento social são considerados uma epidemia pela OMS, seria crucial que as igrejas desenvolvessem uma percepção pastoral direcionada às necessidades dessas pessoas, oferecendo acompanhamento, auxílio para a integração e o fortalecimento do sentimento de segurança e de vínculação. É fundamental entender que a solidão dentro das igrejas é fato e que pessoas precisam ser acolhidas sem que sofrimento seja diminuído ou invisibilizado, o que pode levar à desconexão com a comunidade religiosa e, consequentemente, ao seu afastamento efetivo.

É preciso compreender que as pessoas solitárias nas igrejas são como as ovelhas perdidas da parábola, que precisam ser buscadas e cuidadas. No entanto, o fato de estarem perdidas dentro da igreja as torna invisíveis e abandonadas no meio da multidão. É preciso ter clareza que a presença não significa pertencimento.

Referência: 

WHO. From loneliness to social connection – charting a path to healthier societies: report of the WHO Commission on Social Connection. Geneva: World Health Organization; 2025 Disponível em: https://www.who.int/teams/social-determinants-of-health/demographic-change-and-healthy-ageing/social-isolation-and-loneliness Acessado em 20/11.2025.

Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. Coordenador do Blog do Jung no Espirito Santo (www.psicologiaanalitica.com)

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