Uma Reflexão sobre Religião e Saúde Mental

Uma Reflexão sobre Religião e Saúde Mental

Há poucos dias, assisti a um vídeo de um trecho da participação do Caio Fábio Araújo Filho, teólogo e psicanalista, em um podcast. No vídeo, ele conclui dizendo que “a religião é antissaúde mental, porque ela é dominação e controle”. Essa é uma afirmação contundente e, em várias situações, muito correta. Contudo, tratava-se de um recorte que tornou o vídeo sensacionalista, mesmo não sendo a proposta de Caio Fábio. Ao analisar a íntegra da entrevista, compreendemos seu ponto de vista, no qual ele complementa dizendo que a religião é anti-saúde mental, mas o evangelho não, afirmando que “evangelho e saúde mental são sinônimos”.

Caio Fábio foi uma das maiores referências evangélicas dos anos 90, com uma influência interdenominacional ímpar naquele período e, ainda hoje um pensador e referência religiosa importante. O fato é que ele nos traz uma provocação importante acerca da relação religião e saúde mental: Seria a religião “anti” saúde mental e o evangelho, em sua visão, uma expressão de espiritualidade “pró” saúde mental?

Religião, Religiosidade e Espiritualidade

Para desenvolver a reflexão acerca da saúde mental, precisamos diferenciar os termos “religião”, “religiosidade” e “espiritualidade” que, no dia a dia, são utilizados como se fizessem parte de um único conceito, muitas vezes chamado apenas de “religião”. Estabelecer essa diferenciação é importante para termos precisão sobre o que, de fato, se relaciona à saúde mental.

A religião pode ser definida como “um conjunto de sistemas de crenças, de práticas, de símbolos, de estruturas sociais por meio dos quais o homem, nas diferentes épocas e culturas, vive uma relação com um mundo específico: o mundo do sagrado” (VELASCO apud ÁVILA, 2007, p. 14). Nesse sentido, ela abrange os aspectos racional, doutrinário e ritualístico que moldam a identidade histórica de um grupo em sua interação com o sagrado, associado à instituição religiosa.

A religiosidade é a vivência pessoal do sagrado, mediada por estruturas religiosas como ritos, preces e práticas (jejuns, vigílias, etc.). Assim, uma pessoa pode vivenciar sua religiosidade vinculada a uma religião ou denominação religiosa, como membro da instituição, ou de forma independente da religião, mas mantendo a forma de acesso e relação com o sagrado.

A espiritualidade é a vivência direta do sagrado, sem as regras doutrinárias e teológicas de uma religião institucional. É a vivência pessoal e íntima de um poder superior que organiza e orienta a vida de uma pessoa.

Quando distinguimos a religião institucional, da religiosidade e espiritualidade podemos entender que:

  • Algumas pessoas religiosas, isto é, participantes de uma instituição religiosa, podem não ter qualquer religiosidade ou espiritualidade. Vivendo racionalmente a religião, seguindo estritamente seus preceitos e regras, como condicionantes de comportamentos e condutas, mas sem uma vivência transformadora com o sagrado.
  • A religiosidade é uma vivência pessoal, uma expressão da espiritualidade através da religião. Assim, a crítica e o ataque à religião se torna um ataque à vivência pessoal do sagrado. O respeito à instituição religiosa se reflete como respeito da religiosidade pessoal.
  • A espiritualidade pode ser vivida em expressões pessoais ou coletivas, como como nas artes, no contato da natureza, com o corpo, dentre outros. 

Com essa distinção, queremos apontar a complexidade do fenômeno religioso. Como ‘religião’ é um termo mais familiar, utilizaremos essa palavra ao longo do texto para indicar o fenômeno e, quando necessário, nomearemos as demais formas de sua vivência.

Religião e Saúde

Ao longo da história, a relação entre religião e saúde tem sido estreita. Terrin (1998) aponta que, embora a saúde não seja o objetivo primário das religiões, estas sempre desempenharam uma função terapêutica. Exemplos disso incluem a origem dos hospitais, como as ‘santas casas’ no cristianismo. Em outras religiões, hábitos ritualísticos de higiene, como o Wudu no Islam, foram importantes para a saúde e prevenção de doenças. Essa intersecção se manifesta, inclusive, no campo da linguagem, que em diferentes culturas demonstra essa proximidade histórica entre saúde e religião.

Saúde e salvação são termos co-originários, ou melhor, nasceram de um mesmo conceito e partilharam por muito tempo a mesma sorte e um mesmo significado geral, que acabou cindindo-se bem mais tarde. Trata-se do significado sânscrito do svastha(= bem-estar, plenitude), que depois assumiu a forma do nórdico heill e, mais recentemente, Heil, whole, hall nas línguas anglo-saxônicas, que indicam “integridade” e “plenitude”. A mesma coisa acontece com o termo sotería: na língua grega, segundo a qual justamente Asclépio é considerado sotér: aquele que cura e que é ao mesmo tempo “salvador”. Na língua latina é emblemático o significado de salus, termo capaz de incorporar, mesmo em época recente, tanto o significado de “saúde” como de “salvação”. É preciso, porém, lembrar que também em outras línguas acontece a mesma combinação. (TERRIN,1998 , p 154)

É importante compreender que, milênios antes de a ciência, a medicina e a psicologia surgirem, xamãs e sacerdotes já se dedicavam à saúde da alma e do corpo. Não havia separação entre a religião e as práticas de cura, que foram posteriormente avaliadas e incorporadas às ciências médicas. O que queremos dizer é que religião e ciência não são essencialmente antagonistas; precisamos, sim, ter uma visão crítica acerca dos usos feitos de ambas. Mas, no campo da saúde, houve muitos encontros.

O texto aborda a importante distinção entre religião/religiosidade/espiritualidade e o “obscurantismo religioso” que se opõe à ciência, ao mesmo tempo em que traça um paralelo com o uso da ciência em projetos de exclusão e genocídio (eugenia/higienismo social). A intenção é clara, mas a estrutura e a pontuação podem ser aprimoradas para maior fluidez e clareza.

Ressaltar as aproximações da religião com a saúde é importante não só para distinguir a religião do obscurantismo religioso que ataca a ciência, as vacinas e incita guerras e outros conflitos. Mas também para expor que o obscurantismo é um projeto de poder que se utiliza das religiões para manipular e controlar as massas, voltando-se contra a ciência e também contra outros grupos religiosos, sejam eles da mesma matriz ou de outras. Da mesma forma, discursos supremacistas e de ódio, com defesas de práticas de eugenia e de higienismo social (ainda que discretas) se utilizam da ciência, ainda hoje, para promover projetos de poder racistas e de exclusão, que desumanizam grupos étnicos e populações periféricas, a fim de promover genocídios.

Esses mecanismos de poder se valem da ignorância, produzindo discursos cotidianos e dispersos na sociedade, utilizando ora o saber científico, ora o saber religioso, para controlar, disciplinar e docilizar os corpos. Tais mecanismos são desafiadores tanto para a religião quanto para a ciência e geram um impacto profundo na saúde física e mental das pessoas. Acredito que Caio Fábio, um profundo crítico do clericalismo, ao afirmar que a “religião é anti-saúde mental”, se referia a essas formas de poder exercidas pela maioria das lideranças religiosas que utilizam as necessidades de saúde, segurança e prosperidade como instrumentos de controle e dominação sobre a população nas igrejas.

A Saúde Mental

Atualmente, há uma vasta base de estudos sobre a importância da relação entre religião e a saúde mental. Akerman et al. (2020), por exemplo, enfatizam a necessidade de pensar a promoção da saúde não apenas a partir do referencial da doença (patogênese), mas através do conceito de ‘salutogênese’, que se dedica a entender a produção de saúde como a capacidade inerente aos sujeitos de articular sua compreensão, seu manejo e a produção de sentidos em resposta a diferentes experiências vividas. A religião, nesse sentido, seria um fator protetivo e correlato à promoção de saúde.

Muramaki e Campos (2012) indicam três aspectos nos quais a religião pode contribuir para a saúde. A primeira contribuição manifesta-se tanto na perspectiva institucional da religião – no que se refere às regras e hábitos de saúde, como o consumo de substâncias (álcool, tabaco) e à adesão a tratamentos médicos – quanto pela mobilização da fé como energia que auxilia no enfrentamento da doença e no manejo de perdas, raiva, medos, frustrações e isolamento. Além disso, práticas como a oração e a meditação podem ser eficazes na regulação do estresse e da ansiedade.

O segundo aspecto apontado é que a religião possui um importante papel como rede de apoio social. Os grupos religiosos se caracterizam pela proximidade de pensamentos, sentimentos e visão de mundo, e, dessa forma, a igreja ou grupos de encontro (células, pequenos grupos, etc.) favorecem o sentimento de pertença, a validação de sentimentos, a autoestima e servem como referência de segurança.

O terceiro aspecto é que a religião atribui um sentido ao sofrimento, ressignificando a dor para torná-la (referindo-se à dor) suportável, auxiliando, assim, o processo de enfrentamento da doença. 

Esses são os aspectos que apontam como a religião pode ser um fator de proteção à saúde mental e física. Contudo, é crucial reconhecer a existência de fatores de risco associados à religião, em algumas situações, pode haver a uma perspectiva negativa em relação ao processo de adoecimento. Essa visão pode se manifestar, por exemplo, na associação da doença com culpa, “falta de Deus” ou insuficiência de fé. Outro ponto crítico reside no tratamento, onde a religião pode se tornar uma barreira, estimulando a recusa ou abandono das intervenções profissionais. 

A religião pode se tornar um fator de risco à saúde mental, especialmente quando a experiência religiosa é marcada por sentimentos de punição e perseguição, e a figura de Deus é vista como um agente que abandona e castiga os fiéis por não seguirem as regras denominacionais.

Uma dificuldade adicional significativa é a lacuna na formação dos profissionais de saúde mental no que concerne a uma anamnese espiritual ou avaliação da religião. Essa deficiência impede uma compreensão mais adequada do papel da religião na vida do paciente e, consequentemente, dificulta a integração desse aspecto fundamental no plano terapêutico e no processo de tratamento.

A contribuição junguiana à compreensão da religião e saúde mental

A psicologia analítica possui uma compreensão positiva acerca da religião e da saúde. Em, 1935, nas conferências de Tavistock, Jung fez uma afirmação que nos ajuda a pensar a dimensão relação da religião com a saúde mental: 

O que são as religiões? São sistemas psicoterapêuticos. E o que fazemos nós, psicoterapeutas? Tentamos curar o sofrimento da mente humana, do espírito humano, da psique, assim como as religiões se ocupam dos mesmos problemas. Assim, Deus é um agente de cura, é um médico que cura os doentes e trata dos problemas do espírito; faz exatamente o que chamamos de psicoterapia. Não estou fazendo jogo de palavras ao chamar a religião de sistema psicoterapêutico. É o sistema mais elaborado, por trás do qual se esconde uma grande verdade prática. (JUNG, 2000a, p. 167-8)

Para além da experiência do sagrado, Jung compreendia que as religiões oferecem diferentes recursos para a promoção da saúde e para lidar com as adversidades da vida. A religião, como instituição, com suas regras e doutrinas, poderia auxiliar, oferecendo enquadre e contorno, possibilitando a organização e o centramento para auxiliar em processos de desorganização psíquica.

Jung não fazia distinção entre religiosidade e espiritualidade, mas compreendia que ambas auxiliavam como um exercício de autoconhecimento, de amadurecimento e de uma relação profunda com o Self. Para ele, essa dimensão do ser humano era crucial para a individuação, o processo de tornar-se um indivíduo completo e integrado. A busca por significado e transcendência, inerente à religiosidade e à espiritualidade, era vista como um impulso vital para a saúde psíquica e o desenvolvimento da personalidade. 

Ele afirmava que

Minha atitude é, portanto, positiva com relação a todas as religiões. No seu conteúdo doutrinário reconheço aquelas imagens que encontrei nos sonhos e fantasias de meus pacientes. Em sua moral vejo as mesmas ou semelhantes tentativas que fazem meus pacientes, por intuição ou inspiração próprias, para encontrar o caminho certo de lidar com as forças psíquicas. O sagrado comércio, os rituais, as iniciações e a ascese são de grande interesse para mim como técnicas alternativas e formais de testemunhar o caminho certo. (JUNG, 1989, p. 326)

O grande desafio para conciliar a religião e a promoção de saúde reside na lacuna formativa, apontada por Muramaki e Campos (2012), o que fortalece preconceitos tanto por parte dos profissionais de saúde quanto dos pacientes e seus grupos religiosos. Jung apontava como fundamental compreender as necessidades religiosas e espirituais do paciente, bem como seu sistema simbólico e de crenças, para entendê-lo em sua realidade psíquica. Pois, assim é possível que, mesmo com resistência ao tratamento ou com barreiras criadas pelo grupo religioso, seja possível estabelecer um diálogo levando em consideração o paciente e sua fé e, quando possível, encontrar uma saída para muitos impasses.

Para finalizar…

A religião pode atuar tanto como fator protetor quanto de risco para a saúde. É fundamental compreender que nenhuma religião é homogênea, nem mesmo as  denominações apresentam uniformidade em suas congregações. Enquanto algumas igrejas são lugares seguros e protetivos, outras se tornam fatores de risco. Por isso, a provocação de Caio Fábio ao dizer que ‘a religião é anti-saúde mental’ é tão importante. Normalmente, a igreja ou denominação é julgada pelos atos de seus líderes religiosos, e líderes disfuncionais (ou ‘neuróticos’) podem adoecer suas comunidades, tornando-as um fator de risco. Nesses ambientes, muitos fiéis se tornam multiplicadores de preconceitos e de discurso de ódio gerando sofrimento tanto dentro quanto fora da denominação religiosa. 

É fundamental termos de uma visão crítica acerca da religião, dos líderes religiosos e de doutrinas contrárias à vida. Mas, estas não negam o potencial estruturante e restaurador da espiritualidade no campo da saúde mental.

Referências Bibliográficas 

Akerman, Marco; Mendes, Rosilda; Lima, Samira; Guerra, Henrique Leonardo; Silva, Rafael Afonso da; Sacardo, Daniele Pompei; Fernandez, Juan Carlos Aneiros. Religião como fator protetor para saúde. Einstein (São Paulo)., v. 18, eED5562, ago. 2020. https://doi.org/10.31744/einstein_journal/2020ED5562
ÁVILA, Antônio, Para conhecer a Psicologia da Religião, Edições Loyola: São Paulo,SP, 2007.
JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989.
JUNG,C.G. Vida Simbólica Vol. I , Petrópolis,: Vozes 2000
MURAKAMI, R.; CAMPOS, C. J. G.. Religião e saúde mental: desafio de integrar a religiosidade ao cuidado com o paciente. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 65, n. 2, p. 361–367, mar. 2012.
TERRIN, A.N. O Sagrado Off Limits, São Paulo, SP: Edições Loyola, 1998.

Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. Coordenador do Blog do Jung no Espirito Santo (www.psicologiaanalitica.com)

Publicar comentário