A Culpa e as Virtudes Cristãs

A Culpa e as Virtudes Cristãs

O sentimento de culpa é universal e complexo. Nas narrativas mítico-religiosas, a culpa é uma explicação para o sofrimento, explicitando a condição humana e as regras sociais e sagradas que devem ser seguidas. Assim, a culpa possui um aspecto fundamental e constituinte de nossa psique.

Ávila (2007) diferencia a culpa ou culpabilidade madura e saudável da imatura ou patológica. A primeira, caracterizada pelo receio de prejudicar outra pessoa, grupo ou instituição, gera um sentimento de pesar que leva ao cuidado com o outro, à empatia e à reparação. Essa culpabilidade está ligada a um desenvolvimento maduro, não causa prejuízos ao indivíduo e contribui para as relações interpessoais e o sentimento de pertencimento. A culpabilidade imatura, por sua vez, foca no individual e narcísico, com o temor de sofrer dano, e está associada à dificuldade em assumir responsabilidades pessoais e sociais, tema que será aprofundado ao longo deste texto.

No desenvolvimento humano, a culpa tem suas raízes ligadas às necessidades primárias de proteção e segurança, que são manifestadas através das relações de apego, pertencimento e interação social.

Na primeira infância, essas necessidades ganham contorno e são supridas na relação com a mãe ou cuidadores, envolvendo um conjunto de expectativas e afetos que podem ser vivenciados pela criança como sensações de satisfação, insatisfação ou dor, qualificando a relação da criança com o ambiente (representado pela mãe e cuidadores). Com o amadurecimento, a experiência com o ambiente se amplia com a entrada no campo simbólico, caracterizado pela linguagem e pelas regras sociais presentes na família, escola, comunidade etc., que, em circunstâncias adequadas, ampliam a dimensão de segurança, proteção e pertencimento. Desse modo, internalizamos as expectativas e regras exteriores que condicionam a sensação de pertencimento, validação e segurança.

Assim, internalizamos as expectativas, desejos e idealizações de nossos pais, bem como as regras, a moral e os valores sociais, como uma forma de nos sentirmos amados, pertencentes e seguros em nossas relações. Esses elementos de nossa história perpassam diferentes estruturas de nossa personalidade, como nossos complexos, a persona e os núcleos de identidade do Ego, formando um sistema de moralidade interior. Em condições saudáveis, esse “fator moral inconsciente” possibilita o amadurecimento e a constituição de nossa individualidade, conectando-nos com o Self e a coletividade. Contudo, quando vivenciado em situações desfavoráveis, é dissociado, produzindo sofrimento,  neurose e a culpa.

A culpa é uma expressão desse sistema de moralidade e, toda vez que falhamos, transgredimos ou nos omitimos em situações que afetam esse sistema moral, experimentamos o sentimento de culpa. Este se manifesta como: reações de autocrítica severa, aprisionamento ao passado, tristeza, ansiedade, pensamentos obsessivos, somatizações, comportamentos compensatórios (ex: perfeccionismo excessivo) e, em casos extremos, comportamentos autodestrutivos.

Devido à influência religiosa em nossa cultura, a culpa pode ser intensificada quando associada à religião. Isso ocorre devido a introjeção de uma imagem punitiva de Deus que se identifica e potencializa complexos parentais negativos. Com frequencia, produz uma autoimagem negativa e dependente de validação externa. Podemos compreender tal cenário como uma vivência religiosa neurótica, caracterizada por uma culpa associada imaturidade, que Ávila (2007), distinguiu  em três tipos:.

A Culpa Tabu refere-se à forma mais imatura e irrefletida de vivência da culpa, associada a uma identificação primitiva, na qual a simples violação de regras ou proibições já produz a culpa. Como não há envolvimento de uma responsabilidade pessoal, tanto a culpa quanto a “purificação da culpa” ocorrem de forma fluida, por meio da confissão e reparação simples. É a expressão de uma simples adesão ao sistema moral socio-religioso.

A Culpa Narcísica refere-se à culpabilidade introjetada pelas expectativas dos pais, associadas ao “ideal do ego”, um termo psicanalítico que indica as expectativas parentais, geralmente reforçadas por valores religiosos e sociais. Na psicologia analítica, podemos compreender o “ideal do ego” como difuso na persona, nos complexos e no próprio ego. Assim, um ego imaturo ou fragilizado necessita constantemente de elementos externos de validação como referência de autoestima, autoaceitação e autoconceito. Quando o indivíduo falha em sustentar essas exigências, surge uma culpa desproporcional à falha, gerando sofrimento e uma percepção muito negativa de si mesmo.

“Essa culpabilidade, que comporta em seu limite uma agressão contra si mesma, apresenta-se no mundo dos sentimentos como um sofrimento que pode levar a uma depressão paralisante na qual o individuo vai se isolando em si mesmo e desinteressando-se pela transformação do mundo em que vive” (Avila, 2007, p.220)

A culpa legalista refere-se à culpabilidade relacionada à rigidez de um sistema de moralidade interior, marcado pela educação religiosa conservadora, no qual as obrigações se impõem à autonomia e à liberdade pessoal. Nesses casos, os indivíduos sentem-se coagidos a agir porque aprenderam que era certo, encontrando em si muita resistência à abertura ao novo. Nela, encontra-se uma dependência infantil em relação à aceitação ao grupo, aceitando suas normas e convenções de modo literal, rígido como se fossem sagradas. A culpa atua constantemente como um pano de fundo, gerando atitudes compensatórias de rigidez, moralismo e santidade.

A chamada “culpa religiosa” é um processo complexo que envolve o sofrimento pessoal e uma concepção neurótica da religião. Esta visão punitivista, controladora e coercitiva, aproveita-se da fragilidade individual, impregnando-a profundamente com a culpa, que é alicerçada no poder e controle da liderança religiosa.

A culpa, potencializada pela religião, pode devastar o indivíduo, gerando uma profunda cisão interior. Isso prejudica a experiência restauradora do sagrado e mantém a pessoa presa à ideia do pecado. Frequentemente, esses indivíduos resistem ao processo psicoterapêutico, tornando-se um grande desafio para o psicólogo, pois o discurso religioso assume um caráter defensivo, impedindo a reflexão e a mudança de perspectiva em relação ao sofrimento e à culpa.

No livro “Ab-reação, Análise de Sonhos, Transferência”, Jung faz uma reflexão acerca do confronto com o inconsciente que é de grande valia para pensarmos a culpa. Ele afirma:

(…) Viver fugindo de si mesmo só traz amargura, e viver consigo mesmo requer uma série de virtudes cristãs, que, no caso, devemos ter em relação a nós mesmos. Estas virtudes são: paciência, amor, fé, esperança e humildade. É importante beneficiar o próximo com elas, não resta a menor dúvida, mas logo vem o diabo do narcisismo, dá-nos uns tapinhas nas costas e diz: “Bravo! Muito bem!” E como esta é uma grande verdade psicológica, ela tem que ser invertida em relação a outras tantas pessoas, a fim de que o diabo tenha algo a censurar. Mas se for preciso ter essas virtudes para conosco mesmos, isso nos torna felizes? E se for eu mesmo o receptor de minhas próprias dádivas, se for eu mesmo o menor entre os meus irmãos que devo acolher dentro de mim? E se tiver que reconhecer que estou necessitado de minha própria paciência, de meu amor, de minha fé e até de minha humildade? Que o diabo, meu opositor, aquele que sempre em tudo me contraria, sou eu mesmo? Podemos realmente suportar-nos a nós mesmos? Não se deve fazer aos outros o que não se faria a si mesmo. E isto é válido para o mal como para o bem. (Jung,213, §522) 

Desenvolver as virtudes cristãs é um exercício de acolhimento, perdão e maturidade, necessários para lidar com a culpa. É fundamental compreender que nosso sofrimento está relacionado, na maioria das vezes, à nossa história pessoal, às limitações do ambiente e aos relacionamentos que tivemos, e não apenas a uma entidade maligna ou a uma punição divina. Com muita frequência, lidamos com essa situação na psicoterapia, onde precisamos abordar a culpa enraizada em um discurso religioso adoecido.Assim, tanto o paciente quanto o psicoterapeuta precisam vivenciar essas virtudes cristãs.

Apesar de as virtudes cristãs estarem tradicionalmente relacionadas à teologia, Lionel Corbett (2024) sugere que elas podem ser compreendidas psicologicamente. A fé pode ser entendida como uma capacidade psicológica desenvolvida a partir da confiança e do apego seguro (cf. o texto “Fé, Apego e Psicoterapia”), que nos permite encontrar segurança em meio à adversidade. Na psicoterapia, o analista confia nos processos integrativos e simbólicos do Self, o princípio organizador e transformador da psique, frequentemente identificado como a imago dei (imagem de Deus), que possibilita o equilíbrio e o desenvolvimento psíquico.

O amor é um elemento essencial para o desenvolvimento psíquico e a cura, sendo capaz de integrar os elementos dissociados da psique. É uma força poderosa que contém sentimentos destrutivos de raiva e ódio, possibilitando a harmonia e a relação com os objetos interiores e exteriores. Através da transferência, o ego é capaz de simbolizar e reintegrar a história pessoal, ressignificando a culpa.

A esperança é indispensável para a vida e a saúde humana, assim como a capacidade de abstração e a busca por soluções que transcendam o momento presente. Isso possibilita uma forma mais eficaz de enfrentar e suportar o sofrimento. Na terapia, o terapeuta deve acolher e dar continência a desesperança do paciente até que uma nova esperança possa emergir.

A humildade é uma postura de abertura e acolhimento dos processos inconscientes, incluindo a culpa. É compreender que não somos responsáveis por tudo e que não podemos dar conta de tudo, reconhecendo, assim, nossa limitação humana. Com frequência, a culpa limita nossa visão, por isso é preciso ter paciência e humildade para reconstruir o entendimento da nossa história, nos acolher e permitir que a transformação ocorra em nós mesmos.

Reconhecer que, muitas vezes, somos nossos próprios acusadores, os maiores críticos e sabotadores, é o primeiro passo para lidar com nossa sombra. Um dos maiores desafios do processo de autoconhecimento ou da psicoterapia é o desenvolvimento dessas virtudes cristãs para conosco, para que possamos nos confrontar com nossas escolhas passadas e presentes com segurança, superando a culpa patológica, encontrando o perdão interior e, assim, ter uma vida íntegra.

Referências Bibliográficas

ÁVILA, Antonio, Para conhecer a Psicologia da Religião, Edições Loyola: São Paulo,SP, 2007.
CORBETT, L. O Caldeirão Sagrado, Petrópolis: Vozes, 2024.

Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. Coordenador do Blog do Jung no Espirito Santo (www.psicologiaanalitica.com)

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