A Experiência Religiosa e a Realidade Psíquica em Jung

A Experiência Religiosa e a Realidade Psíquica em Jung

Vinheta clínica.

Há muitos anos, atendi um homem que sofria de depressão severa desde a juventude. Quando começou o acompanhamento comigo, ele estava com cerca de 50 anos. Na juventude, ele participou do movimento espírita, mas com o passar dos anos deixou de frequentar as atividades, embora ainda se reconhecesse como espírita. Sentia-se extremamente solitário e vazio.

Certa vez, falando de suas experiências da juventude com o espiritismo e de seu sofrimento. Disse queria alguma resposta sobre seu sofrimento, Sugeri: “Por que você não pergunta para a espiritualidade?”. Ele achou graça da sugestão e respondeu: “Pode ser, talvez eu tente”.

 Na semana seguinte, ele  contou que no final de semana, quando caminhava por uma praça, ele se sentou num banco, sentido muito vazio, ele fechou os olhos e conversou com o mundo espiritual. Permaneceu em silêncio por alguns instantes e, então, sentiu uma presença que se intensificou. Era uma presença materna, acolhedora e calorosa, que parecia envolvê-lo em um abraço. Ele encontrou sua resposta e, por um período, sentiu paz e pertencimento que há muito tempo não experimentava.

A Experiência religiosa 

Lidar com a experiência religiosa dos pacientes pode ser um desafio para quem esta iniciando na profissão. Isso porque não temos estudos, na graduação, para entender a experiência religiosa. Muitos acabam ignorando ou, pior ainda, classificando como algo psicopatológico.

É curioso observar que a experiência religiosa, apesar de estar profundamente enraizada na vivência humana, permanece distante dos estudos e da prática do psicólogo. Isso está intimamente relacionado às mudanças na compreensão do mundo que, desde a modernidade, passaram a distinguir a perspectiva científica da religiosa.

Na perspectiva religiosa, o mundo é atravessado pela experiência do sagrado, transformando o mundo natural por sua presença. Assim, a realidade é vista como uma unidade integrada, onde todos os acontecimentos ocorrem segundo a vontade divina. Essa visão implica que a busca pela vontade divina orienta a compreensão da realidade e da verdade, que passa a ser delimitada pelas tradições religiosas.

Na perspectiva científica, o mundo é considerado dessacralizado, ou seja, é visto sem atribuições religiosas ou místicas, sendo entendido apenas como o mundo natural. Sua compreensão ocorre de forma analítica, na qual o entendimento do mundo é fragmentado em diversas áreas de estudo, como política, economia, saúde e educação. Essa percepção é marcada pela pluralidade e pela relativização do sentido de verdade, isto é, diferentes áreas podem adotar critérios distintos para considerar algo como verdadeiro, tornando o conceito de verdade variável conforme o contexto.

Essas duas formas de ver e compreender a realidade nos definem a forma como compreendemos a experiência religiosa. É esperado que o(a) psicólogo(a) adote a perspectiva científica, enquanto o paciente religioso, em maior ou menor grau, utiliza a perspectiva religiosa como referência para interpretar sua própria vivência. Quando o profissional demonstra flexibilidade e abertura para compreender o significado da experiência religiosa do paciente, torna-se possível construir uma ponte simbólica entre essas duas formas de ver o mundo, favorecendo e acolhendo o paciente em sua trajetória pessoal.

Mas, o que é a experiência religiosa? Como podemos compreendê-la?

O termo experiência religiosa se refere pois ao aspecto imediato, autêntico, do conhecimento  religoso, enquanto consciência do contato e de significações potenciais, e não a elaborações intelectuais consideradas enquanto isoladas de um contato de realidade básico. (Amatuzzi, 1998, p.53)

A experiência religiosa, especialmente quando se manifesta como relação de encontro com o sagrado ou divino, assume uma conotação de experiência mística. Segundo Ávila (2007), essa experiência possui as seguintes características:

  • Vivência de comunhão: trata-se do sentimento de encontro e de relação com o Sagrado, o transcendente, permitindo que a pessoa perceba a totalidade do ser de maneira direta e profunda, sem a necessidade de intermediários ou barreiras conceituais.
  • É inefável: são experiências subjetivas, tão profundas quanto difíceis de comunicar, sendo expressas apenas por metáforas e símbolos.
  • Vivência de iluminação: São experiências profundamente transformadoras, repletas de significado e importância, nas quais o sentimento de comunhão integra e unifica toda a realidade. Essa vivência pode ser comparada a momentos em que a pessoa se sente intensamente conectada ao universo, percebendo uma unidade entre si e tudo que a cerca.
  • Valor: São experiências que possuem valor intrínseco, atribuindo sentido à vida e permitindo que as pessoas se sintam agraciadas por vivenciá-las.
  • Autoridade: São experiências que possuem uma força singular e conferem um sentido de autoridade absoluta para quem as vivência, sendo consideradas autênticas e verdadeiras independentemente de validação externa. Isso significa que, para a pessoa que passa por esse tipo de experiência, ela tem um valor e uma certeza tão intensos que questionar sua validade simplesmente não se coloca como uma possibilidade, pois a vivência é sentida como real em um nível profundo e inquestionável.
  • A passividade:  manifesta-se quando as experiências religiosas acontecem ao indivíduo, que, embora possa adotar práticas ou atitudes para favorecer essas vivências, acaba se entregando ao mistério, assumindo uma postura receptiva e passiva diante do desconhecido. 
  • Universalidade: Apesar de estarem relacionadas à religiosidade, essas experiências não são exclusivas da religião, podendo ser vivenciadas através das artes, ideais políticos, filosóficos, entre outros.

A experiência religiosa é complexa e envolve elementos simbólicos da matriz religiosa e cultural na qual o paciente está inserido, podendo assim tornar-se um desafio para o psicólogo.

A realidade Psiquica.

No campo da psicologia, Jung foi um dos poucos pensadores que compreendeu a complexidade da experiência religiosa e a dificuldade da mentalidade científica em compreender o sentido profundo associado a essas experiências.

Assim, Jung elaborou, em sua compreensão da realidade psíquica, uma possibilidade de apreender as diversas manifestações da alma sem se opor à perspectiva científica. Segundo Samuels et al. (1988), a compreensão de Jung acerca da realidade psíquica teria as seguintes características:

  • A Realidade Psíquica como Experiência: Este é o domínio de tudo o que afeta ou impressiona uma pessoa com a força da realidade, sendo vivenciado mais como uma verdade narrativa (o mito pessoal) do que histórica. Para Jung, essa realidade subjetiva se manifesta de forma empírica, por exemplo, na tendência do Inconsciente de personificar seus conteúdos como nos sonhos, nas fantasias, imaginação ativa; as figuras resultantes exercem um impacto emocional real sobre o Ego, provando sua existência psíquica.
  • A Realidade Psíquica como Imagem: Esta perspectiva sustenta que toda a consciência é indireta, mediada pelo sistema nervoso e por processos psicossensoriais. O mundo interno e externo são experimentados exclusivamente por meio de imagens (em sentido amplo e metafórico), isto é, são representações. Devido a essa composição imaginal, Jung defende que a realidade psíquica é, na verdade, a única realidade que podemos experimentar de forma direta.
  • A Realidade Psíquica como Natureza e Função da Psique: O conceito define a psique como um mundo intermediário onde o físico (matéria orgânica e inorgânica) e o espiritual (ideação e cognições) se encontram e se harmonizam, desfazendo a ideia de um conflito inerente entre mente e matéria. Exemplificando, o medo do fogo e o medo de fantasmas ocupam posições idênticas nessa realidade, ativando a psique da mesma forma e confirmando o papel unificador e abrangente desse constructo metapsicológico.

A realidade psíquica expressa o que os alquimistas chamaram de “unus mundus” ou “Um Mundo”, que é a compreensão do mundo como unitário e integrado. Essa concepção se aproxima da ecologia profunda, compreendendo a vida humana e a natureza como fios que tecem a realidade, sem separar mundo interno e externo. A mesma perspectiva foi abordada através do conceito de Sincronicidade, no qual as realidades interna e externa se expressam de forma integrada, em fenômenos não-causais e profundamente significativos.

Assim, a psicologia junguiana compreende a experiência religiosa sem julgar seu conteúdo ou forma. Jung reconhecia profundamente o aspecto transformador da experiência religiosa para os pacientes religiosos, que deveriam ser compreendidos em sua religiosidade. Ele afirmou

Minha posição neste assunto é a seguinte: Enquanto um paciente é deveras membro de uma Igreja, deve levar isto a sério. Deveria ser real e sinceramente um membro daquela Igreja e não ir ao médico para resolver seus conflitos quando acredita poder fazer isso com Deus. Quando, por exemplo, um membro do Grupo Oxford me procura para tratamento, eu lhe digo: “Você pertence ao Grupo Oxford; enquanto for membro dele, resolva seus assuntos com o Grupo. Não posso fazer nada melhor do que Jesus”.

Gostaria de contar-lhes um caso desses. Um alcoólico histérico fora curado pelo movimento desse Grupo, e este o usou como uma espécie de caso-modelo. Mandaram-no viajar por toda a Europa, onde dava seu testemunho e dizia ter procedido mal, mas ter sido curado por esse movimento. Depois de haver contado vinte ou cinqüenta vezes sua história, ficou cheio e recomeçou a beber. A sensação espiritual simplesmente desapareceu. O que fazer com ele? Agora dizem que se trata de um caso patológico e que ele precisa de um médico. No primeiro estágio foi curado por Jesus, no segundo, só por um médico! Tive que recusar o tratamento desse caso. Mandei-o de volta a essas pessoas e lhes disse: “Se vocês acreditam que Jesus curou este homem da primeira vez, ele o fará pela segunda vez. E se ele não o puder, vocês não estão supondo que eu possa fazê-lo melhor do que Jesus, não é?” Mas é exatamente o que pensam: quando uma pessoa é patológica, então Jesus não ajuda, só o médico pode ajudar.

Enquanto alguém acredita no movimento do Grupo Oxford, deve permanecer ali; e enquanto uma pessoa é da Igreja Católica, deve estar na Igreja Católica para o melhor e para o pior, e deveria ser curada através dos meios dela. E saibam os senhores que eu vi que as pessoas podem ser curadas por esses meios – é um fato. A absolvição e a sagrada comunhão podem curá-los, mesmo em casos bem sérios. Se a experiência da sagrada comunhão for real, se o rito e o dogma expressarem plenamente a situação psicológica do indivíduo, ele pode ser curado. Mas se o rito e o dogma não expressarem plenamente a situação psicológica do indivíduo, ele não pode ser curado. (Jung, 1997, p.271-2)

A compreensão da realidade do paciente é fundamental para a psicoterapia.Assim, enquanto a experiência religiosa do paciente for importante, deve ser levada a sério.

 Referências bibliográficas

AMATUZZI, Mauro Martins. Experiência religiosa: busca de uma definição. Estudos de Psicologia (Campinas), v. 15, n. 1, p. 49-65, 1998. 

ÁVILA, Antonio, Para conhecer a Psicologia da Religião, Edições Loyola: São Paulo,SP, 2007.

JUNG, C.G. A Vida Simbólica – Vol I, 2 ed Petrópolis, RJ: Vozes, 2000

SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. RJ: Imago, 1988.

Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. Coordenador do Blog do Jung no Espirito Santo (www.psicologiaanalitica.com)

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